Escrito por: Rogério Hilário, com informações do jornal “Estado de Minas” e do site CONCERTO

Acordo entre Codemig e Fiemg ameaça Orquestra Filarmônica

Governo de Minas Gerais exige que a orquestra, que pertence à sua estrutura, faça mais, mas está disposto a investir cada vez menos no grupo

Rafael Motta/Divulgação

 

A Orquestra Filarmônica de Minas Gerais vai, a partir de 31 de julho, dividir a Sala Minas Gerais, sua sede desde 2015, com espetáculos de teatro, shows, eventos corporativos e tudo o mais que um novo gestor julgar cabível. Isso porque, na sexta-feira, 5 de abril, a Companhia de Desenvolvimento Econômico de Minas Gerais (Codemig), proprietária da sala, assinou um acordo com a Federação das Indústrias de Minas Gerais (Fiemg) para que o espaço seja gerido pelo Sesi Minas (leia aqui).

No anúncio do novo acordo, o presidente da Codemig, Thiago Coelho Toscano, afirmou que a sala é “subutilizada”, com apenas “três horas de espetáculo por semana”, o que impede o prédio de “estar vivo, ocupado, borbulhando”. O comentário é desonesto. Três horas de concertos exigem período de ensaio. Se considerarmos os dias de preparação, somados aos concertos didáticos, concertos para juventude, apresentações de música de câmara, atividades da Academia da Filarmônica e a gravação de discos, a sala, em 2024, estará ocupada ao longo de 270 dias. É muito, é pouco? Com certeza é mais do que três horas semanais.

Mas há um outro aspecto a ser considerado. O repasse de verbas do Estado para a filarmônica está em queda desde 2014. Naquele ano, às vésperas da mudança do grupo para a Sala Minas Gerais, ele foi de R$ 22,5 milhões; desde 2021, é de R$ 17,5 milhões – e a queda ainda é maior se considerarmos a ausência de reajuste relacionado à inflação acumulada do período, de quase 20%, ou a variação cambial, lembrando que só entre 2020 e 2021 o real teve desvalorização de quase 40% perante o dólar, moeda em que se paga, por exemplo, aluguel de partituras e direitos autorais, além de cachês de artistas estrangeiros.

O repasse de R$ 19,5 mi representa 42% do orçamento anual da orquestra. Não paga os salários dos funcionários, músicos incluídos, na casa dos R$ 27 milhões. E há ainda as verbas necessárias para a programação artística (R$ 10 milhões), manutenção da Sala Minas Gerais (R$ 4,3 milhões) e outros custos administrativos (R$ 1,7 milhão). O orçamento total é, portanto, de cerca de R$ 44 milhões. É muito, é pouco? Para efeito de comparação, a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo e a Sala São Paulo possuem orçamento anual de R$ 140 milhões.

No caso da orquestra paulista, o repasse do Estado também corresponde a cerca de 43,5% da verba total, valor que não cobre o gasto com salários, ou seja, o funcionamento básico da orquestra. No início de 2023, no Theatro Municipal de São Paulo, a falta de reajustes também fez do repasse feito pela prefeitura insuficiente para cobrir a folha de pagamentos. E há ainda, para ficarmos em apenas alguns exemplos, o caso do Festival Amazonas de Ópera que, neste ano, foi simplesmente cancelado pelo governo amazonense.

Isso tudo quer dizer que, nesses casos, e eles não são os únicos, as esferas estatais a que pertencem as orquestras e teatros deixaram de ser suas mantenedoras, transferindo para o governo federal (por meio das leis de incentivo que regem os patrocínios que ajudam a fechar as contas) parte não pequena da responsabilidade.

De volta à Filarmônica, porém, o caso é ainda mais grave.

O Estado de Minas Gerais, ao falar em espaço “subutilizado”, exige que a orquestra, que pertence à sua estrutura, faça mais, mas está disposto a investir cada vez menos no grupo. E o novo acordo torna possível uma diminuição ainda maior: se, na nova configuração do espaço, a filarmônica for forçada a fazer número menor de apresentações, cairá a arrecadação com ingressos (hoje na casa de R$ 2,6 milhões); e, com a renda obtida com o estacionamento ou com o aluguel para eventos agora indo para o Sesi, outros buracos podem se abrir no orçamento.

Ou seja, a asfixia pode ser ainda maior.

Leônidas Oliveira, secretário de Estado da Cultura e do Turismo, disse ao jornal “Estado de Minas” que a mudança “vai dar para a sala e para a filarmônica maior tranquilidade para a gestão do espaço” e que a temporada 2024 não será afetada. Nada falou dos próximos anos – ainda não há contrato de gestão entre a secretaria e o Instituto Cultural Filarmônica, gestor da orquestra, para 2025. E, convenhamos, é difícil acreditar que o fato da orquestra só ter ficado sabendo do novo acordo pela imprensa teria sido mero descuido. Soa mais como projeto.

A situação concreta a partir de agora é a seguinte: a Sala Minas Gerais passa a ser uma criatura com duas cabeças. Uma delas entende o espaço como uma sala que gira em torno da música clássica, em apresentações e ações pedagógicas; a outra, como um espaço para eventos, ligados ou não à cultura. O quanto esse arranjo é de fato possível não se sabe – mas é fato que o Sesi Minas, pertencente à Federação das Indústrias de Minas Gerais, a partir de julho, terá controle da agenda da sala e, portanto, da agenda da filarmônica. No limite, o acordo permite que se decida que a orquestra nem mesmo use a sala para ensaios, por exemplo.

O caso é didático. Mostra, primeiro, a incompreensão da importância de uma orquestra sinfônica para a vida cultural de uma cidade ou estado. E, segundo, revela a ausência de uma política cultural de fato. Não há problema em cobrar de uma orquestra que faça mais, encontre novos públicos ou maneiras inovadoras de realizar seu trabalho (o que a filarmônica já vem buscando). Mas fazer isso sem estar disposto a pensar em conjunto possibilidades ligadas a uma política mais ampla, levando em consideração as lógicas próprias da atividade, é discurso vazio, em especial quando não se está disposto a investir nisso. Em meio a esse contexto, dizer que, com menos orçamento e sem uma sala própria, está se investindo no futuro da orquestra é enorme desfaçatez. Se há aqui alguma política em jogo, é a de potencial destruição. O tempo vai dizer se é esse o objetivo. Mas já estão colocadas as condições jurídicas para o fim da Filarmônica de Minas Gerais.

Governo Zema decretou a morte da orquestra

Para Nelson Rubens Kunze, diretor-editor da revista CONCERTO, “o governo de Romeu Zema decretou a morte da Filarmônica de Minas Gerais”. “Em uma ação política inacreditável, o governo põe fim a um projeto sinfônico moderno, aberto, plural e democrático, que, além de sua função precípua de ser difusor do grande patrimônio histórico (não custa lembrar, esse patrimônio é uma das mais significativas criações do gênio humano), desenvolve programas para formação de novas plateias, academia de ensino, fomento a novas composições, concertos ao ar livre, turnês pelo estado, resgate do repertório brasileiro, música de câmara e muito mais.”

“Quando li sobre a gestão compartilhada do Acordo de cooperação técnica assinado pela Codemig e pelo Sesi Minas pensei, na minha ingenuidade, que fosse uma gestão compartilhada com a Filarmônica de Minas Gerais. Ledo engano! Lendo o documento agora, vejo o óbvio: o compartilhamento é entre a Codemig, empresa estatal proprietária do espaço, e o Sesi Minas, e exclui a Filarmônica de Minas Gerais de qualquer participação”, disse Nelson Kunze.

“Quando li sobre a gestão compartilhada do Acordo de cooperação técnica assinado pela Codemig e pelo Sesi Minas pensei, na minha ingenuidade, que fosse uma gestão compartilhada com a Filarmônica de Minas Gerais. Ledo engano! Lendo o documento agora, vejo o óbvio: o compartilhamento é entre a Codemig, empresa estatal proprietária do espaço, e o Sesi Minas, e exclui a Filarmônica de Minas Gerais de qualquer participação”, escreveu Nelson Kunze.

“No Acordo em si, a Filarmônica é citada uma vez, para registrar que existe um contrato de gestão do Instituto Cultural Filarmônica com a Secretaria da Cultura (que expira em 31 de dezembro de 2024) e um termo de permissão de uso assinado com a Codemig, que vai até o dia 31 de julho de 2024. Sim, a Filarmônica deve desocupar a sua sede até o próximo dia 31 de julho! Ao subtrair da Filarmônica a sua sede, o governo de Minas Gerais escancara a sua intenção de acabar com um dos mais bem-sucedidos projetos culturais de nossa geração”, protestou.

“Tenho grande simpatia pelo Sistema S, que congrega as organizações paraestatais Sesc, Senai, Senac e Sesi. Em São Paulo, sabemos do papel crucial e estruturante que o Sesc representa para a Cultura. Não conheço especificamente a ação do Sesi em Minas Gerais, mas acredito que deva ter relevância e impacto social. O fato de a entidade manter uma orquestra de câmara há muitos anos, já é bom sinal.”

“Ao celebrar o novo contrato de cooperação para a gestão da Sala Minas Gerais criando uma disputa entre o Sesi Minas e a Filarmônica, o governo de estado promove um verdadeiro ‘canibalismo cultural’. De forma ardilosa, o governo se utiliza de uma entidade de importante ação cultural de escopo geral para atropelar um projeto voltado à música clássica. Ao estabelecer uma disputa entre Sesi Minas e Filarmônica, o governo espera adesão de apoio popular contra uma atividade que julga, por ignorância e preconceito, elitista e conservadora.”

“É mentirosa a fala do presidente da Codemig quando diz que a sala é ‘subutilizada’, com apenas ‘três horas de espetáculo por semana’, o que impede o prédio de ‘estar vivo, ocupado, borbulhando’. Não são três horas por semana que a Sala Minas Gerais é ocupada pela Filarmônica, são 270 dias ao ano, como a orquestra bem respondeu. E o prédio está, sim!, vivo, ocupado e borbulhando! “Do jeito que está, o Acordo firmado entre a Codemig e o Sesi Minas, avalizado pelo governo do Estado de Minas Gerais, significa a destruição de um dos mais relevantes e valorosos projetos culturais do Brasil!”, concluiu.