Escrito por: Isabela Abalen/Jornal O Tempo

Governo Zema não investe o mínimo, acumula dívida de R$ 6 bi e impõe caos na saúde

Durante a pandemia, investimento em prevenção e enfrentamento à Covid-19 receberam menos de 50% da verba planejada. Até outubro de 2023, 65.881 pessoas morreram no Estado por agravo do coronavírus

Rovena Rosa/Agência Brasil

O governo de Minas Gerais não tem investido os valores mínimos determinados em lei na saúde do Estado. Nem mesmo no pior ano da pandemia, em 2021, quando os hospitais ficaram lotados e cerca de 44 mil pessoas morreram, os 12% do orçamento exigidos pela Lei Complementar Nº 141 foram empenhados. Naquele ano, o Estado ficou devendo para a rede R$ 1,2 bilhão, enquanto pacientes com quadros graves de Covid-19 tiveram que ser transferido do interior de Minas para São Paulo por falta de leitos de Unidade de Tratamento Intensivo (UTI).

Esse subfinanciamento do sistema não é de hoje: de 2009 a 2020, o governo acumulou uma dívida de R$ 6,7 bilhões com as secretarias municipais de saúde. Um dinheiro garantido na legislação, prometido no orçamento apresentado pelo próprio governo, não pago e que fez muita falta na ponta ao refletir em desassistência para a população. O governo informou que "está colocando as contas da saúde em dia".

Até outubro de 2023, 65.881 pessoas morreram no Estado por agravo da Covid-19, segundo o último boletim epidemiológico da Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais (SES-MG). A maioria das vítimas, 67%, morreu em 2021. No ano em que o mundo vivia em uma força-tarefa para vencer a pandemia, o Executivo Estadual destinou menos de 50% de verba prometida para o investimento nos temas: “Enfrentamento ao Coronavírus”, “Combate Epidemiológico ao Coronavírus” e “Prevenção ao Contágio e Enfrentamento ao Coronavírus (Covid-19)”. É o que está registrado no Relatório Anual de Gestão do governo.

“A ausência de investimento adequado para o atendimento imediato, tão necessário naquele momento, é uma constatação grave. A demora na alocação recursos para a compra de equipamentos essenciais, como máscaras e respiradores hospitalares, e outras ações pertinentes, gerou um cenário desafiador”, afirma o deputado Lucas Lasmar (Rede), o parlamentar que mais enviou ofício à SES-MG em 2023.

Ele destaca a falta de leitos de UTI Adulto e Neonatal – como aconteceu em São Sebastião do Paraíso, no Sudoeste do Estado, que teve que transferir paciente com Covid-19 para São Paulo – que teve como a principal lacuna a saúde pública de Minas Gerais até hoje. “Essa situação se reflete em milhares de vidas perdidas em todo o Estado pela insuficiência desses leitos”, alerta.

Mortes à espera de vaga de UTI

Em Governador Valadares, na região do Rio Doce, duas idosas, uma de 82 anos e outra de 67, morreram na mesma semana à espera de uma vaga de UTI em março de 2021. Segundo a prefeitura, os leitos públicos estavam ocupados em 100%, e as pacientes não resistiram às complicações da doença sem o atendimento adequado. Em nota, à época, a prefeitura lamentou o caso e disse que houve tratamento e assistência “dentro das possibilidades da instituição”.

Mas, assim como pontuou o deputado, o problema não terminou com o fim da pandemia. Sem que os investimentos na saúde resolvessem o problema dos leitos, em outubro de 2023, Élcia Elizabeth Canuto Araújo, de 54 anos, perdeu o pai, Antônio Canuto Fernandes, de 88, na sala de espera por uma vaga de UTI em Barbacena, no Campo das Vertentes. O problema não era Covid-19, e, sim, uma prótese mal colocada no quadril. Ela conseguiu na Justiça que o pai colocasse a prótese e, com a rejeição da peça, buscou o tribunal, outra vez, a internação para o tratamento da infecção. Mas, quando Antônio piorou, não teve leito de UTI a tempo.

“Ele passou mal no dia 11 de outubro, começou a vomitar e aspirou um pouco de líquido para o pulmão. Ficamos na sala vermelha, à espera. Lá deveria ter uma UTI, mas não estava funcionando. No dia 12, meu pai teve parada cardíaca, não aguentou a faleceu na sala de espera mesmo”, lamenta a filha, relembrando o trauma. “No hospital, fizeram o que podiam. Se tivesse UTI, talvez meu estivesse vivo agora. Eu só queria que as autoridades olhassem para esse problema”, continua.

Ciclo vicioso

Como em ciclo vicioso, o saldo negativo cresce a cada ano. De 2019 a 2022, o Estado deixou de restos a pagar da saúde cerca de R$ 9,5 bilhões. Nesse levantamento, estão incluídas dívidas do Estado com hospitais, farmácias e municípios, por exemplo. Em dados do Portal da Transparência, de novembro de 2023, constam um acréscimo na dívida de R$ 111,2 milhões em empenhos não pagos ao longo do ano passado – isso, só para 29% das cidades de Minas. “A projeção da dívida com os 853 municípios, apenas na área de saúde, é muito maior”, acrescenta o deputado Lucas Lasmar.

Na prática, mesmo com as parcelas pagas do Fundo Estadual de Saúde –  R$ 1,7 bilhão de 2021 até o fim de 2023 –, o  déficit com os municípios só cresce. “Como esse fluxo de gasto em saúde permite que fiquem restos a pagar, os valores não liquidados no ano em curso vão para o ano seguinte. A base não é cumprida e vai enrolando, acumulando despesas ao longo do século. É uma forma de burlar o piso”, explica Eli Iola Gurgel, especialista em Economia da Saúde e professora da Faculdade de Medicina da UFMG.

Na compreensão do Governo do Estado, no entanto, o mínimo constitucional está sendo cumprido pelo terceiro ano consecutivo, "com aplicação de 12,18% da arrecadação total de impostos estaduais na saúde em 2023", informou. O investimento, no entanto, não termina de ser pago. 

Mesmo não se concretizando, como o valor autorizado para o ano respeita os 12%, o Estado não é penalizado com a suspensão de transferência de outros impostos, como prevê a legislação. “O mínimo constitucional deveria considerar como investimento em saúde o valor efetivamente pago, não apenas o empenhado (prometido). O Tribunal de Contas do Estado, por exemplo, só considera gastos mínimos em saúde pelas prefeituras aquilo que foi efetivamente pago. É por isso que temos diversos prefeitos e prefeitas inelegíveis”, analisa Lucas Lasmar.

 

Ele lembra que, na época do governo Aécio Neves, despesas de saneamento eram contabilizadas como saúde, o que fazia com que o investimento na área ficasse maior. “Isso foi proibido, mas hoje se usa a estratégia de empenhar o valor. Uma preocupação adicional é que o empenho pode ser cancelado posteriormente, gerando percentuais fictícios”, analisa. A assessoria do deputado federal Aécio Neves foi procurada para falar sobre o tema, mas, até o fechamento desta edição, não havia se pronunciado. 

De acordo com a especialista Eli Iola Gurgel, o não cumprimento do orçamento se tornou um mau hábito que inviabiliza investimentos maiores no futuro. “A manobra é a seguinte: como você não gastou todo o planejado com a saúde no ano, como ficaram restos a pagar, na discussão do orçamento do ano seguinte, você não vai aumentar o orçamento, porque vai entender que não precisa. Vira um clico que não deixa completar os 12% da lei. É difícil até para medir a necessidade de investimento”, avalia.

Foi a falta do cumprimento do investimento mínimo na saúde do Estado que fez o Conselho Estadual de Saúde de Minas Gerais (CES-MG) reprovar os Relatórios Anuais de Gestão da SES-MG de 2019 a 2021, além de aprovar o de 2022 com ressalvas. O Conselho faz parte da fiscalização dos gastos do Governo com o SUS. Segundo o coordenador da Câmara Técnica de Orçamento e Finanças do CES, Erli Rodrigues, o imbróglio é maior pela falta de transparência com a dívida.

“O que o Governo tem feito é, quando chega dezembro, empenha os valores que estão faltando, mas não liquida, não se compromete a pagar. No entendimento da lei 141, ou liquida o valor ou separa os recursos. Se não, vira uma bola de neve”, diz. “Não basta falar que o dinheiro existe, tem que provar. Nós pedimos o extrato do recursos que está em caixa, e recebemos a respostaque é informação sigilosa. Isso deveria estar no Portal da Transparência. Se o recursos entra ara o caixa geral, não tem como saber o que dali é da saúde”, continua o coordenador.

Prejuízos ao SUS

Rodrigues chama atenção para as complicações que o Sistema Único de Saúde (SUS) está enfrentando pela falta de financiamento, problema que aumentou no pós-pandemia. “O Estado não conseguiu exercer o mínimo, os serviços pararam, as cirurgias eletivas pararam, a atenção básica ficou por conta da Covid. Agora, estamos com um reflexo de casos mais graves de saúde com dificuldade de assistência. Estamos entre os 25 piores Estados em investimento em saúde”, afirma.

Para o deputado Lucas Lasmar, o principal prejudicado é o cidadão. “Essa situação resulta em uma ineficiência na execução das políticas públicas. Geralmente, os cortes mais significativos ocorrem na Atenção Básica, e os municípios assumem o ônus para evitar a interrupção do atendimento. Mas o fornecimento de medicamentos e a realização de exames também são suspensos, incluindo procedimentos como cateterismos, tomografias e mamografias. Mesmo com os pagamentos em dia, tais recursos são frequentemente insuficientes para atender à demanda da população no tempo adequado”, denuncia. 

Municípios são obrigados a investir mais

Uma vez que falta recurso estadual, os municípios são forçados a oferecer mais do que o planejado. A especialista Eli Iola Gurgel cita que as Secretarias de Saúde Municipais estão se responsabilizando cada vez mais com a saúde local quando comparado com os recursos estaduais e federais. “O município está perto das necessidades da população. Ele tem mais controle do que realmente precisa, se é ambulância, médico de atenção básica, consulta especializada. Então, a secretaria municipal briga mais frequentemente com a prefeitura pelo investimento. A partir dos anos 2000, muitas cidades vêm gastando mais do que os 15% da lei, enquanto o Estado ocupa uma posição mais confortável”, analisa.

O deputado Lucas Lasmar foi Secretário Municipal de Saúde da cidade de Oliveira, na região Centro-Oeste do Estado, de 2017 a 2022. Durante a pandemia, ele se viu forçado a agir sozinho. “Na época, tive que realizar diversas ações com os recursos próprios do município e do Fundo Municipal de Saúde (FMS), porque tanto o Estado quanto o Governo Federal demoraram para disponibilizar recursos para que os municípios pudessem adaptar as Unidades Básicas de Saúde, criar leitos de UTI e enfermarias de isolamento nos Hospitais Filantrópicos”, conta. De acordo com o monitoramento da dívida pela SES-MG, o Estado deve à Oliveira R$ 21,8 milhões de valores do orçamento que não foram repassados.

A situação é a mesma em Muriaé, na Zona da Mata, para a qual o Estado deve R$ 46,1 milhões em valores do orçamento. Segundo atualização da contabilidade do município, 25% (R$ 11,6 milhões) foram quitados. A Secretária de Saúde de Muriaé, Luiza Agostini de Andrade, conta do processo interno de controle da verba estadual para melhor aproveitamento diante das circunstâncias. “Realizamos a previsão da receita no orçamento com base nos valores fixos recebidos pelo Estado no ano de anterior, e aguardamos o pagamento das parcelas que são atreladas a programas específicos, como a Assistência Farmacêutica, por exemplo, que tem receita por bimestre”, diz. 

Mesmo assim, é o município que “segura as pontas”, segundo relato da secretária Luiza. “Tentamos aguardar a receita começar a ser repassada ao município para iniciar seus gastos, porém, neste período que aguardamos os recebimentos, utilizamos os superávits financeiros e o recurso próprio do município”, afirma.

Quando os valores finalmente caem na conta de Muriaé, já chegam comprometidos. "São investimentos em Atenção Básica à Saúde e média e alta complexidade, com o intuito de realizar exames, aquisição de insumos, mobiliários, realizar cirurgias e etc.”, enumera Luiza Agostini de Andrade.

A reportagem tentou contato com o Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais e aguarda retorno.

O que diz a SES-MG

A Secretaria de Saúde do Estado de Minas Gerais (SES-MG) informa que está colocando as contas da saúde em dia, com o pagamento simplificado e ampliado da vítima com os municípios e com as instituições filantrópicas. Além disso, a atual gestão mantém o cumprimento do mínimo constitucional pelo terceiro ano consecutivo, com a aplicação de 12,18% da arrecadação total de impostos estaduais na saúde em 2023.

O Acordo do Fundo Estadual, que rege a dívida do Estado com os municípios, é de R$ 6,7 bilhões, dos quais foram pagos R$ 1,7 bilhão até o momento – sendo R$ 394 milhões em 2021, R$ 659 milhões em 2022 e R$ 743 milhões em 2023.

Além disso, em setembro de 2023, o governador Romeu Zema e a Assembleia Legislativa de Minas Gerais assinaram Termo Aditivo que regulamenta a transposição e transferência de saldos constantes e financeiros provenientes de repasses, parcerias e convênios firmados com a SES-MG, o que significa que os recursos que anteriormente só poderia sem gastos para um fim específico podem ser utilizados pelo município de acordo com a sua necessidade na área de saúde.

Para dar flexibilidade no pagamento o valor da dívida com os hospitais filantrópicos foi retirado do acordo e, em 20023, foram repassados R$ 266,3 milhões a 191 instituições. O restante, R$ 197 milhões, será pago em 2024, antecipando para menos de um ano o pagamento da dívida, que era previsto até outubro de 2030. Os recursos são referentes à dívida do Pro-Hosp, ao Encontro de Contas e Câmara de Compensação (extrapolamento) e aos saldos referentes aos débitos de entidades.

A SES-MG garante que vem cumprindo mensalmente os valores repassados aos hospitais, por meio dos programas Valora Minas e Opera Mais, maior política de cirurgias eletivas da história do Estado.