Escrito por: Rogério Hilário, com informações da ALMG

Entrega do patrimônio do povo mineiro é repudiada em audiência pública na ALMG

Parlamentares, movimentos sindical e sociais se unem contra PEC de Zema que retira referendo popular e facilita venda de estatais como Cemig, Copasa, Copanor e Gasmig

Rogério Hilário

 

Demissões, má prestação de serviços, tarifas oneradas e situações de desabastecimento foram apontadas em audiência, nesta sexta-feira (15/9/23), como consequências negativas de processos de privatização ocorridos no País em áreas essenciais.

O assunto foi discutido na Comissão de Administração Pública da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), a requerimento da deputada Beatriz Cerqueira (PT), tendo em vista a proposta do governo mineiro de tentar mudar a Constituição do Estado para facilitar a privatização de estatais, como Cemig, Copasa, Copanor e Gasmig.

Todos os convidados da audiência se posicionaram contra essa intenção, objeto de proposta de emenda à Constituição (PEC) enviada pelo Poder Executivo à ALMG, por meio da qual o governo pretende acabar com a exigência de referendo popular para a privatização nas áreas de energia e abastecimento de água, além de reduzir o quórum necessário para a aprovação de leis desse tipo.

Representantes de entidades da sociedade civil e trabalhadores lotaram o Auditório José Alencar, tomado ainda por faixas e cartazes contra a PEC, que ainda não começou a tramitar na ALMG porque mensagem do Executivo sobre a matéria ainda precisa ser lida em Plenário, marcando seu recebimento formal.

“Precisamos conhecer experiências de outros estados para demonstrar que o caminho da privatização está errado, e o objetivo é juntar foças para que que a PEC nem tramite. E vamos fazer muitas audiências ainda para isso”, disse a deputada Beatriz Cerqueira.

Desde 2001, a Emenda à Constituição 50 estabelece que a aprovação de leis para desestatização de empresas estatais de distribuição de gás, saneamento básico e de geração, transmissão e distribuição de energia elétrica exige quórum de 3/5 da ALMG, ou seja, 48 deputados, além da realização do referendo. 

Retrocesso é apontado

Deputados presentes e convidados criticaram a justificativa que tem sido usada pelo governo na defesa da privatização, de que ela seria necessária à recuperação fiscal do Estado, à modernização das empresas e à maior competitividade.

Fernando Duarte, supervisor do Dieese, o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos, lembrou que a Copasa e a Cemig são empresas de economia mista, controladas pelo Estado, mas com ações privadas na bolsa.

Segundo ele, a Cemig gerou um lucro superior a R$ 4 bilhões no ano passado e a Copasa, de R$ 937 milhões, resultando em expressivos dividendos para o Estado.

"Em termos econômicos, Cemig e Copasa são empresas saudáveis, premiadas e geradoras de lucros que garantem caixa para o Governo do Estado. Abrir mão dessa receita e falar em privatização para recuperação fiscal é muito problemático, é uma lógica tosca e perversa que imperou no passado."

Para ilustrar, Fernando Duarte fez um histórico do que ocorreu no mundo, destacando que países como França e Inglaterra chegaram a ter serviços como os de energia privatizados.

"Hoje o que estamos observando em outros países é um movimento de reestatização para garantir serviços públicos essenciais de qualidade à população", advertiu ele.

O supervisor do Dieese também avaliou que o argumento de maior competividade, usado para justificar essas privatizações, não se sustenta em atividades como energia e saneamento, porque estas seriam naturalmente áreas de monopólio. 

O deputado federal Rogério Correia (PT-MG) fez um histórico da mobilização que gerou em Minas a garantia do referendo popular e do quórum qualificado para a aprovação das privatizações. Ele, que foi o relator da PEC sobre a matéria na época, frisou que ela foi aprovada pela ALMG quase por unanimidade e taxou de retrocesso a intenção do atual governo.

"Municípios pequenos são os mais prejudicados com a privatização na área do saneamento e na energia a Eletrobras privatizada já é um problema", afirmou Rogério Correia.

Blecaute

Fabíola Antezana, vice-presidenta da Confederação Nacional dos Urbanitarios (CNU), é trabalhadora da Eletrobras e endossou as críticas. 

Ela também fez um histórico do processo de privatização da empresa, retomado em 2020 e finalizado recentemente. Segundo Fabíola, houve um processo intencional de sucateamento da empresa ainda durante a gestão estatal. Dos 17 mil trabalhadores que a Eletrobras tinha em 2016, restaram 6,5 mil, lamentou ela.

“Isso já está trazendo consequências, como o blecaute que acometeu o Brasil em agosto, mostrando a falta que fazem trabalhadores experientes no sistema”, frisou ela.

Prejuízos ao Estado e ao consumidor

Arilson Maroldi Chiorato, deputado estadual e coordenador da Frente Parlamentar das Estatais e Empresas Públicas da Assembleia Legislativa do Paraná, denunciou o processo de privatização ocorrido no setor de energia de seu estado, hoje entregue à Copel. 

Segundo o parlamentar do Paraná, a empresa estatal era lucrativa, eficiente e premiada, e praticava a menor tarifa de energia elétrica do Brasil.  Ainda assim, teria tido seu patrimônio, avaliado em R$ 47 bilhões, subavaliado na primeira rodada do leilão de privaização, caindo para R$ 5,2 bilhões.

Já Luiz Carlos Teixeira, presidente da Federação das Associações de Moradores de Ouro Preto (Famop), falou sobre a situação danosa, segundo ele, que a população da cidade enfrenta desde que a concessionária atual de água, a Saneouro, controlada por uma empresa da Coréia do Sul, assumiu o serviço, em outubro de 2019, onerando em muito as tarifas cobradas.

Segundo ele, a empresa anunciou que este ano foram feitos 2.726 cortes no abastecimento por problemas de pagamento, significando que 11 mil pessoas, de uma população de 74 mil moradores, ficaram sem o direito à água. “Ou seja, 14% da população teve sua água cortada. São pessoas negras, pobres e periféricas, e não caloteiras”, desabafou Teixeira.

Parlamentares endossam críticas

As deputadas Lohanna (PV) e Bella Gonçalves (Psol) e os deputados Professor Cleiton (PV) e Ricardo Campos (PT) defenderam uma ampla mobilização da sociedade contra a privatização de serviços essenciais. 

Lohanna ainda criticou posicionamento do Governo de Minas segundo o qual o Estado não teria como fazer referendos sobre o assunto. "Dizer isso em pleno ano de 2023 é menosprezar a potência do Estado", disse.

Bella Gonçalves advertiu que muitas comunidades ainda lutam para garantir acesso a energia, água e saneamento, que são de interesse público e não podem ser vistos como mercadoria.

Na mesma direção, Professor Cleiton afirmou que recentemente, na cidade goiana de Rio Verde, a Santa Casa local teria tido a energia cortada por questões de pagamento, resultando, segundo, ele na morte de quatro pacientes. No seu entendimento, isso não teria ocorrido se o serviço fosse estatal e comprometido com critérios sociais.

Mentiras e lucro para os amigos

Representantes de entidades sindicais e dos movimentos sociais acusaram o governador Romeu Zema de usar mentiras como argumentos para convencer a população acerca da privatização. E que, na realidade, Zema quer favorecer os amigos com a entrega do patrimônio do povo mineiro.

“Por volta de 1998 estávamos num momento muito ruim. Eduardo Azeredo era o governador e Fernando Henrique Cardoso, presidente. Davam como certa a venda da Cemig. Alardeavam que não adiantava protestar ou lutar. Chegaram a contratar um curso de inglês para nos ensinar a dialogar com o novo patrão. No final das contas, Azeredo não se reelegeu. Itamar Franco venceu a eleição e acabou impondo as regras que dificultam a privatização de empresas estatais. O movimento sindical teve um trabalho muito forte neste processo. Só que as pessoas precisam de um pouco mais de informação do que a imprensa, que está do lado do Zema, vem passando para elas. Saber mais o que está acontecendo no Brasil e no mundo. O que está acontecendo em Minas é um retrocesso, com tentativa de consolidar um monopólio do setor privado. Falam que a população terá várias opções, que poderá escolher entre 20 empresas a que vai fornecer a energia elétrica. Tecnicamente, isso é inviável. Não há mais espaço nos postes para fiação destas empresas”, afirmou Jairo Nogueira Filho, presidente da Central Única dos Trabalhadores de Minas Gerais (CUT/MG).

“Zema quer, mesmo, é entregar a energia e o saneamento para seus amigos. As empresas públicas, até 1988, não podiam ter lucro. Tudo tinha que ser reinvestido. Quando passaram a ser de economia mista, renderam lucro aos acionistas. Mas ainda há o subsídio cruzado, que tem função social. No caso, um local que gera lucro maior, subsidia aquele em que há menor arrecadação. Com a privatização, isso vai acabar. Outro detalhe: Zema nunca falou nas campanhas que queria tirar do povo o direito de votar. De participar do referendo popular sobre as privatizações de Cemig, Copasa e Gasmig. Ele tem medo da consulta popular. É um autoritário que fica passeando de Metrô na Europa, mas jogou pesado para a venda do Metrô de Belo Horizonte. A linha não aumentou um único quilômetro, mas a tarifa foi reajustada e está maior do que a passagem de ônibus. Com o processo de PDV, com a saída de técnicos especializados, o Metrô vai ter um apagão técnico e teremos notícias de acidentes. Nossa luta também é pela reestatização do Metrô”, disse o presidente da CUT/MG.

“MAB, CUT, parlamentares e sociedade civil estamos juntos uma grande luta no dia 26 de setembro em Belo Horizonte, numa marcha da Frente de Defesa dos Serviços Públicos. Privatização mata; privatização não é a solução; precariza o trabalho e do povo tira o pão. Água, luz, gás, saúde e educação não são mercadorias. O interesse do povo mineiro é que a Copasa, a Gasmig, a Cemig e a Codemig continuem públicas. Os atingidos em Minas Gerais viveram dois dos maiores crimes de uma mineradora privatizada há 26 anos, que deixaram um rastro de mortes, sequelas sociais, ambientais e financeiras. Não houve reparação social ou ambiental. A lógica da privatização é o lucro. A luta do MAB contra os efeitos danosos deste projeto completa 35 anos. Nas nossas lutas históricas enfrentamos empresas transnacionais, cujo o objetivo sempre foi lucrar. O dever o Estado é defender o patrimônio do povo mineiro. Mas Zema diz que o Estado não sabe cuidar deste patrimônio e a iniciativa privada, sim. Claro, quando dá lucro. O Estado mineiro tem condições de defender e cuidar do patrimônio público. Zema, tire a mão do nosso patrimônio, da Cemig, da Copasa, da Gasmig”, disse Fernanda de Oliveira Portas, do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB).

“Temos enfrentado esta luta há tempos. A privatização está além das nossas pautas corporativas. Qualquer privatização é danosa e temos exemplos disso. O Zema está na contramão da história. No país e no mundo, quem fez privatizações estão reestatizando. A sanha privatista dos anos 1990, no governo de Fernando Henrique Cardoso, também tinha o saneamento como alvo. Por causa da nossa resiliência, defendendo um dos serviços mais essenciais para a população, todos os serviços continuaram sendo públicos e baratos. Manaus e Tocantins são exemplos que os deputados deveriam conhecer para não flexibilizar ou alterar a Constituição do Estado, com a retirada do referendo popular. Em Tocantins, a empresa que assumiu o saneamento em 1998 para atender 139 cidades, em 2008 devolveu a metade. Em Manaus, em 2000, houve a privatização com promessa de universalizar o serviço. No entanto, 87,5% da população ficou sem rede de esgoto. E, além disso, apesar de estar sendo sucateada para ser vendida, a Copasa presta um serviço de qualidade”, assegurou Adilson Ramos de Souza, diretor de Formação e Educação do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias de Purificação e Distribuição de Água e em Serviços de Esgotos de Minas Gerais (Sindágua/MG).

Emerson Andrada Leite, coordenador-geral do Sindicato Intermunicipal dos Trabalhadores na Indústria Energética de Minas Gerais (Sindieletro/MG), considerou a audiência pública muito esclarecedora e importante. O dirigente sindical fez algumas considerações. “É fundamental lembrarmos que o Brasil ainda apresenta resquícios de tempos sombrios. Precisamos explicar para as pessoas que o serviço público atende melhor que o privado. É incômodo ter que dizer que é melhor uma empresa de água pública. O governador se elegeu dizendo que privatizaria tudo e tenta convencer as pessoas com mentiras. E mentiras ruins. Primeiro afirmou que a privatização acabaria com a corrupção. E depois se envolveu numa avalanche de escândalos de corrupção. Como se o setor privado estivesse livre de corruptos, veja o caso das Lojas Americanas. Também disse que iria privatizar para acabar com as amarras burocráticas. Ou seja, contratações sem licitações. Zema vem não com a visão de um estadista, mas sim usa a estrutura do Estado para favorecer seus amigos, como aconteceu com a isenção de IPVA para locadoras, que atende ao seu amigo Salim Mattar. Este processo de entrega vai provocar aumentos de preços e enriquecimento dos favorecidos. Zema quer transferir do bolso dos cidadãos dinheiro para o mercado financeiro.”

O coordenador-geral do Sindieletro/MG também citou exemplos de fracassos na privatização de energia, como Adilson Ramos fez com relação ao saneamento. “No Amapá, houve um apagão de quase um mês. Privatizaram a Eletrobrás prometendo que o custo da energia cairia 7%. Na verdade, subiu 9%. Não mostram a realidade. Já no início dos anos 2000, na prestação de serviços da Cemig, morria um trabalhador a cada 45 dias. No final do segundo governo de Anastasia, as estatísticas deixaram de ser divulgadas. E o número de acidentes na Cemig foi aumentando.”

A coordenadora-geral do Sindicato Único dos Trabalhadores em Educação (Sind-UTE/MG), Denise Romano, anunciou a criação de uma Frente em Defesa do Serviço Público, que já conta, segundo ela, com 22 instituições representativas de trabalhadores. Uma das ações previstas é pressionar os deputados estaduais contra a PEC que flexibiliza as privatizações.

“A Frente nasceu da necessidade de enfrentamento conjunto das ações do governo Zema. Com vistas ao regime de recuperação fiscal (RRF) e a decisão de combater o processo de privatização, nos juntamos numa organização inédita, com representatividade. A privatização não é uma pauta só de servidoras e servidores públicos estaduais. Temos aqui nesta audiência pública e na Frente bancários, trabalhadores dos Correios, companheiras e companheiros do MAB. E o Luís Carlos Teixeira, da Famop, mostrou os efeitos danosos da privatização da água em Ouro Preto. Apresentou uma conta que mais parece uma fatura de cartão de crédito. Nós estaremos nesta situação se o referendo for retirado. Metade da população de Ouro Preto está privada do acesso à água. Esta discussão não é só dos servidores públicos. É fundamental que a população deste Estado saiba que nós corremos o risco de ficar sem água nas nossas torneiras, por causa de um processo que só visa o lucro. Temos que traduzir isso para as pessoas. E para isso teremos toda a força social gerada pela Frente.”