Escrito por: Rogério Hilário, com informações da Adere
Adere-MG propõe investimentos, políticas públicas estruturantes, punições exemplares, expropriação de terras de escravagistas e valorização das carreiras e concurso para auditores fiscais do trabalho
A denúncia, que resultou no resgate de 207 pessoas em situação análoga à escravidão em vinícolas famosas do Rio Grande do Sul, causou repercussão nacional ao ser noticiada pela imprensa. Haja vista que o envolvimento de grandes marcas de vinho, associadas à gravíssima violação da dignidade de trabalhadoras e trabalhadores, trouxe à tona um crime que vem sendo praticado constantemente não apenas no Sul do país, mas, com números assombrosos de casos, principalmente em Minas Gerais. Especialmente nas lavouras de café do Sul do Estado. E, independentemente da ação dos auditores fiscais do Ministério do Trabalho e do Ministério Público do Trabalho (MPT), as punições são muito brandas e, na realidade, estimulam a continuidade da prática do trabalho escravo.
É o que assegura o coordenador da Articulação dos Empregados Rurais de Minas Gerais (Adere-MG), Jorge Ferreira dos Santos, também da Direção Estadual da Central Única dos Trabalhadores de Minas Gerais (CUT/MG). Ele aponta diferenças entre os casos do Sul do Brasil e de Minas Gerais e apresenta soluções para combater o escravagismo que foi mantido no país, mesmo com a abolição e têm como vítimas em todos os setores da economia, em sua maioria, jovens, negros e mulheres.
Minas Gerais, que lidera o ranking vergonhoso há dez anos, registrou um crescimento no número de casos na gestão de Romeu Zema (Novo), alinhado de primeira hora à política de sucateamento dos serviços públicos de Jair Bolsonaro. Entre 2019 e 2022, quando o Ministério do Trabalho quase foi extinto e houve cortes nas verbas que praticamente paralisaram a fiscalização no Estado, ficou escancarado o incentivo à prática de trabalho escravo. Entre 2018 e 2019, os resgates de trabalhadoras e trabalhadores em situação análoga à escravidão aumentaram de 266 para 468 em Minas Gerais. A evolução nefasta prosseguiu em 2021, com 777 casos, e explodiu no ano passado, com 1.077 resgatados. O que representa 41% do total de resgates registrados no país (2.575) e um aumento de 37,8% em comparação ao ano anterior.
Jorge dos Santos estranha que, embora Minas lidere o ranking de trabalho escravo, a mídia deu mais destaque ao que aconteceu no Rio Grande do Sul. “Minas Gerais está na liderança no registro de casos de trabalhadores escravizados desde 2014. E vamos olhar para o café no meio rural. Dentro desta lógica toda, de Minas Gerais, me chamou a atenção uma matéria no ‘Jornal da Globo’ sobre o trabalho escravo no Brasil. E foram buscar assunto no Rio Grande do Sul. E por que, se o peso da uva é quase nenhum na economia brasileira? O café é muito mais importante na economia, na política, na fama, na organização da sociedade brasileira. O café, queiram ou não, tem um peso enorme no agronegócio e na balança comercial. E a mídia não dá importância aos casos de trabalho escravo nas lavouras de café. Os casos de fazendeiros escravagistas no Rio Grande do Sul estão aparecendo agora, mas já aconteciam há muito tempo. Só agora estão vindo à tona. Sobre o café, há muito tempo as organizações de trabalhadores e de direitos humanos denunciam as violações”, afirmou o coordenador da Adere-MG.
Na análise já feita pela Adere-MG, as realidades dos Estados diferem em alguns aspectos, mas se assemelham na discriminação racial se compararmos as vítimas nas lavouras e em outros ramos econômicos. “A similaridade é que as vítimas resgatadas em fazendas produtoras de uva são da Bahia, como acontece aqui também. Os trabalhadores que migram para o Sul do país são os que passam por Minas Gerais ou São Paulo para as colheitas de café e cana. Nossa discussão, na Adere, é por que eles migram? Por que as pessoas são tão vulneráveis ao ponto de se tornar vítimas de trabalho escravo, independentemente do ramo da economia? No Rio Grande do Sul foram resgatados 207 trabalhadores. Noventa e cinco por cento declarados pretos ou pardos. São majoritariamente jovens, entre 18 de 29 anos.”
“Trazendo a realidade para a colheita de café”, acrescentou Jorge dos Santos, “os resgatados são, em grande maioria, homens: 85% pretos ou pardos e jovens. O perfil do trabalho escravo, seja no Sul ou no Sudeste, mostra que são pretos e pobres, vítimas da exclusão natural e excluídos da riqueza natural da terra. O perfil é o mesmo. Observemos outros grupos. Na construção civil, em Minas Gerais, as vítimas são homens jovens e preto. No serviço doméstico, as mulheres resgatadas são negras. Isso traz uma reflexão: o trabalho escravo moderno demonstra que a herança maldita dos navios negreiros prevalece. Continuam escravizando o povo negro.”
Para Jorge Ferreira dos Santos, é fundamental se discutir a participação do Estado no combate ao trabalho escravo no país. “É bom colocar em discussão a participação do Estado na prevenção e na fiscalização. A maioria dos crimes de exploração do trabalho escravo é cometida no meio rural. O que o Estado está fazendo para evitar que isso aconteça? Tem que haver fiscalização sempre, independentemente de denúncias. Perguntamos: afinal, o que o Estado está fazendo? Não há concurso para auditores fiscais do trabalho há dez anos. Desde 2014 não há concurso e não vi qualquer esforço para repor os auditores, que já eram poucos.”
O coordenador da Adere-MG também questiona a postura do Judiciário. “E, também, perguntamos: qual está sendo o papel do Judiciário na condenação dos crimes? Quantos patrões que cometeram a prática do trabalho escravo foram presos nos últimos dez anos? Quais foram as indenizações pagas pelos crimes? Pelo que percebemos, os acordos, os termos de ajuste de conduta (TACs) são um incentivo às ações dos escravagistas. Tem caso de multa de R$ 3 mil de indenização pagos ao trabalhador por dano moral individual. Tem casos de R$ 1 mil de indenização, que raramente chega a R$ 5 mil. Uma pergunta: uma indenização deste porte pune alguém, ou alimenta esta prática? A estrutura atual do Ministério do Trabalho e Emprego até incentiva os fazendeiros a cometer o crime. A fiscalização vai hoje a uma fazenda e, nas condições normais da estrutura atual, vai levar 28 anos para retornar.”
Para ele, na situação atual, a prática de trabalho escravo compensa para os latifundiários. “O setor patronal tem esta análise e vê que a prática de trabalho escravo compensa. A maioria das multas também é reduzida na Justiça. E o multado hoje, vai ficar anos sem outra punição. Paulo Lima, um fazendeiro de Campanha, foi multado três vezes e condenado por trabalho escravo cinco vezes. E na semana passada foi pego novamente pelo mesmo crime. Se não houver condenações exemplares este círculo vicioso não vai acabar. “
Segundo Jorge Ferreira dos Santos, não há como negar a falta de ações efetivas contra a prática do trabalho escravo e que as grandes marcas estão por trás do escravagismo moderno. “Constatamos vulnerabilidade, falta de políticas públicas estruturantes, falta do Estado na prevenção e na repressão e irresponsabilidade das empresas ou grandes marcas que controlam a cadeia produtiva. Grandes marcas estão por trás dos escravocratas. Por trás deles tem uma empresa de grande porte, para onde eles escoam sua produção. No café temos por trás grandes marcas que controlam a cadeia produtiva. Deveriam ser responsabilizados pelo trabalho escravo de forma indireta. Uma empresa que tem vínculo com uma fazenda na ‘lista suja’, por ser flagrada com trabalho escravo, ainda consegue a certificação do café produzido. O que se vê é café certificado e trabalhador sem direitos. A certificação não é garantia de dignidade no trabalho. No caso da cana, constatamos grandes marcas de açúcar envolvidas com trabalho escravo.”
O coordenador da Adere-MG observa que há soluções para combater as ações dos escravagistas. “Enfim, é preciso desenvolver algumas políticas públicas, responsabilizar as empresas que controlam as cadeias produtivas, as grandes marcas. E que o Estado assuma o papel dele na restrição, na prevenção e na punição. Precisamos da reestruturação imediata da Secretaria de Inspeção do Trabalho, vinculada ao Ministério do Trabalho; da realização urgente de concurso público para auditor fiscal do trabalho. É essencial investir de forma financeira e tecnológica na Auditoria Fiscal do Trabalho. Dar condições financeiras e tecnológica para o trabalho dos auditores e de valorização da carreira deles.”
É imprescindível também, afirmou Jorge Ferreira dos Santos, que o governo federal regulamente, de forma imediata, a Emenda Constitucional 81, que altera o Artigo 243 da Constituição, que fala da expropriação das empresas urbanas e rurais que forem flagradas praticando trabalho escravo. “As terras expropriadas teriam que ser destinadas para a reforma agrária. Com isto temos duas vantagens. Primeiro se rompe o instrumento de exploração. E segundo que se democratiza a terra. No caso da reforma agrária é importante porque faz Justiça à população pobre, especialmente à população negra, que foi sistematicamente excluída do acesso à terra. Com a reforma agrária se combate trabalho escravo, a falta de moradia e o desemprego.”
As violações, segundo Jorge Ferreira dos Santos, são constantes e inadmissíveis e providências urgentes precisam ser tomadas pelas autoridades. “Olhe bem: em torno de 60% dos trabalhadores nas lavouras de café não têm carteira assinada. A grande maioria não recebe nem um tipo de equipamento de proteção individual (EPI) do trabalho. Não têm jornada regular de trabalho e muito menos o descanso semanal é remunerado. As trabalhadoras rurais sofrem ainda mais nas lavouras de café. São excluídas, em sua maioria, do regime previdenciário a partir de pedido do administrativo. Poderiam aposentar aos 55 anos se pudessem comprovar a atividade rural.”
A situação, afirma o coordenador da Adere-MG, fica ainda pior quando há colheita. ”Sem carteira ou EPI, são roubados na forma da produção, pois são obrigados a comprar maquininhas (roçadeiras, mãos mecânicas para derrubar o café) e pagar pela gasolina consumida. Cada maquininha custa R$ 2 mil. Tudo é jogado nas costas do trabalhador. E o café está parando nas mãos das grandes marcas e certificado. Quando não tem idade produtiva, ele é excluído do regime de Previdência. E não falamos ainda do envenenamento de muitos que, mesmo assim, não têm assistência médica”, afirma Jorge Ferreira dos Santos.
Gill de Carvalho
Prevenção e punição
Diante da persistência e, infelizmente, até do aumento dos casos de trabalho escravo no país, e principalmente no Estado, a Central Única dos Trabalhadores de Minas Gerais (CUT/MG) e toda sua base cobram dos governos e autoridades competentes ações e providências urgentes contra esta prática. Primordialmente no meio rural, onde 89% dos resgatados se dedicavam a atividades em grandes cadeias produtivas (café, carvão vegetal, cana de açúcar, bovinocultura de corte). Algo que contraria a imagem idealizada do agronegócio e divulgada na mídia tradicional. Trabalho escravo é um crime, com todas as nuanças de violações de direitos, tanto trabalhistas quanto humanos, quanto a crueldade como é praticado. E, por isso, deve haver prevenção, restrição, repreensão e punição exemplar.
A CUT/MG, juntamente com a Adere-MG e outras entidades de sua base, vêm lutando contra os escravagistas de todos os ramos no Estado. E este empenho no combate ao trabalho escravo resultou na responsabilização da Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig) pela submissão de 179 trabalhadores às condições análogas às de escravos em 2013, em Belo Horizonte. A ação foi realizada por fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego, pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) e acompanhada pela Polícia Federal. Além de submeter trabalhadores à escravidão, a Cemig foi acusada também de terceirização ilegal e contratação de empresas sem licitação.