Escrito por: Rogério Hilário, com informações da ALMG
Sobreviventes, familiares de vítimas, atingidos, Centrais sindicais, movimentos sociais, lideranças políticas, procuradores, promotores e defensores públicos participam de atividades
“Vale assassina. Exigimos Justiça. Não foi acidente, mas o maior crime trabalhista e ambiental da história do Brasil. Ninguém solta a mão de ninguém.” Brumadinho, 25 de abril de 2019, quinta-feira. A data marcou os três meses do rompimento da barragem da Mina do Córrego do Feijão, que ceifou quase 300 vidas, matou o ecossistema do rio Paraopeba, inviabilizou o turismo, o comércio e a agricultura na região, as centrais sindicais, movimentos sociais, lideranças políticas e artistas homenagearam as vítimas e atingidos no Dia Nacional em Memória das Vítimas de Acidentes e Doenças do Trabalho e Dia Mundial da Segurança e Saúde no Trabalho. Com participação de sobreviventes, familiares das vítimas e da população local, foram realizados audiência pública, ato e culto ecumênico, assembleia popular e protesto político-cultural na cidade.
"Que dor é essa, vermelha de lama". "Somos dessa terra, por mais que padeça, somos Brumadinho". Versos de sofrimento, mas também de união foram cantados por coral de crianças e adolescentes da cidade, em meio a faixas de trabalhadores registrando "não foi acidente, foi mais um crime trabalhista e ambiental". Assim Brumadinho recebeu audiência. A reunião, realizada no Espaço Casa Nova, na entrada da cidade, foi pedida pelo presidente da Comissão do Trabalho, da Previdência e da Assistência Social da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), deputado Celinho Sintrocel (PCdoB).
"Muitas das vítimas desse crime que foi o rompimento da barragem eram trabalhadores da Vale, que não tomou providências para proteger nem eles e nem a população. O mesmo tem que ser dito sobre os órgãos públicos de fiscalização", frisou o parlamentar.
Destacando o simbolismo da audiência ser realizada próximo ao dia da segurança do trabalho, o deputado indagou como se poderia explicar o fato de uma empresa como a Vale manter um refeitório e um escritório administrativo funcionando abaixo de uma barragem de rejeitos.
Este foi o caso de Córrego do Feijão, razão de muitos empregados da empresa estarem entre os mortos pela avalanche de lama.
País no ranking de acidentes
"Nem a tragédia de Fundão foi capaz de ensinar alguma coisa à Vale", criticou o parlamentar, referindo-se ao desmoronamento da barragem, também da Vale, localizada em Mariana (Região Central), ocorrido em 2015.
Além de ressaltar essas ocorrências, o deputado ainda advertiu que o Brasil é o quarto colocado entre os países que mais registram acidentes de trabalho fatais. Segundo destacou, a cada 15 segundos uma vida se perde no mundo, em função de doença ou acidente envolvendo o trabalho.
Mortes por acidente de trabalho estariam sendo desconsideradas
Desde o rompimento em Brumadinho, foram registradas ou estão em processo de registro no Sistema Nacional de Mortalidade 208 mortes relacionadas à tragédia.
Mais de 70% delas (149) foram registradas ou estão em processo de lançamento no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) como tendo sido causadas por acidente de trabalho grave.
Os dados foram apresentados por Márcia Lazareno, do Centro de Referência Regional de Saúde do Trabalhador (Cerest) de Betim, vinculado ao SUS.
Segundo ela, apesar do trabalho desenvolvido pelo Centro para levantar as mortes que ocorreram em Brumadinho por acidente de trabalho, familiares de vítimas estariam recebendo benefícios como pensão por razão de morte tipificada como comum.
Márcia esclareceu que isso não muda a situação para os familiares. “Mas pode representar um problema maior para a sociedade, pois estatísticas corretas oferecem instrumentos mais fortes para cobrar reparações futuras que venham a ser necessárias”, frisou a servidora.
Ela alertou, ainda, que essa distorção também pode ter mais impactos financeiros para a sociedade e os contribuintes, e menos para a Vale.
Isto porque benefícios por morte comum recaem, segundo ela, sobre o sistema de previdência nacional, enquanto nos casos de acidente de trabalho a Vale é que teria que arcar com os benefícios.
A representante do Cerest observou que essas distorções têm sido informadas à Previdência, para possíveis encaminhamentos, e na sequência também a outras instâncias afetas à questão.
Especialista alerta para adoecimento e defende rede de cuidados
Já a professora do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Jandira Maciel da Silva, citou outras grandes tragédias que ocorreram em outros países, como a Índia, para concluir que “o comportamento das empresas pelo mundo tem sido muito parecido com esse que estamos vendo em Brumadinho”.
Para Jandira, em situações como essas as populações locais precisariam se unir na busca de outras formas de organizar o mundo do trabalho, construindo novas opções por exemplo à mineração, no caso do município.
Ela ainda advertiu que ocorrências como a da barragem do Córrego do Feijão podem destruir o futuro daqueles que ficam levando ao adoecimento da saúde mental e consequentemente a casos de depressão, de violências diversas e de piora de doenças crônicas.
Emoção em relato sobre vítimas não encontradas
Choro e embargo da voz marcaram a participação da representante da Comissão de Familiares Não Encontrados, Josiane Melo. Josiane perdeu a irmã, Eliane Melo, grávida de cinco meses à época, e que nesta quarta (25) faria 40 anos. "Estamos presos na lama há 90 dias, acordamos e dormimos nela, é como se estivéssemos sendo batidos no liquidificador", disse ela.
Josiane cobrou que as buscas não sejam interrompidas até que as vítimas não encontradas, 37, segundo frisou, sejam localizadas e todas identificadas. Com esse objetivo, ela revelou que a comissão tem se reunido semanalmente com representantes da Defesa Civil e do Instituto de Medicina Legal (IML). "Queremos sepultar nossas joias", frisou Josiane.
Josiane Resende, que perdeu a irmã Juliana Resende e o cunhado Dênis Augusto, mortos na tragédia, também participou da audiência pública. O casal, que pertenciam ao quadro de funcionários da Vale, deixou dois filhos.
O bispo auxiliar da Arquidiocese de Belo Horizonte, Dom Vicente Ferreira, ressaltou que o sistema adotado pela Vale “está falido”. “Em momento algum da Vale pediu perdão de forma explícita a todos os atingidos pelo crime que foi cometido. Mas isso não se anestesia com salário e indenização.”
Ato público ecumênico
Às 12h28, hora exata do rompimento da barragem, foi realizado um ato seguido de culto ecumênico em memória dos mortos pelo rompimento da barragem no Memorial das Vítimas, localizado no trevo do Movimento a Brumadinho, que dá acesso ao município. A manifestação teve faixas de protesto contra a Vale, cartazes com as fotos das pessoas que perderam a vida no crime da Vale e com os nomes dos desaparecidos, que foram citados um a um, enquanto os manifestantes soltavam balões. Josiane Melo novamente falou, como familiar de vítima e representante da Comissão de Familiares de Não Encontrados, e emocionou a todos.
Durante o culto ecumênico também falaram Evair Assis, marido de uma das vítimas do crime da Vale, Angelita, o pastor Antônio de Jesus, e o bispo auxiliar da Arquidiocese de Belo Horizonte, Dom Vicente Ferreira.
A deputada estadual Beatriz Cerqueira (PT), também coordenadora do Sindicato Único dos Trabalhadores em Educação (Sind-UTE/MG) e presidenta da Central Única dos Trabalhadores de Minas Gerais (CUT/MG) esteve presente ao ato, juntamente com o deputado estadual Celinho do Sintrocel (PCdoB).
“Esperamos que os assassinos não fiquem impunes, porque a Vale já está se organizando para que isso aconteça aqui (Brumadinho) o que aconteceu em Mariana. Este é o alerta que faço. A CPI da Mineração é que precisa dar uma resposta sobre tudo isso”, disse Beatriz Cerqueira.
Unidos e organizados
No início da tarde, no Teatro Municipal Nicodemos da Cunha, promotores de Justiça, defensores públicos e procuradores da República esclareceram atingidos e parentes de vítimas do crime da Vale sobres os procedimentos na Justiça para defender os seus direitos. A reunião foi coordenada pelo promotor André Sperling, do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG). Compuseram a mesa Joceli Andrioli, o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB); Geraldo Emediato, do Ministério Público do Trabalho (MPT); Edmundo Dias, do Ministério Público Federal (MPF); Wallace Feijó, da Defensoria Pública da União (DPU); Nélio Braga, da Prefeitura de Brumadinho; Walter Freitas, do MPMG; Helder Magno da Silva, do Ministério Público e procurador regional de Direitos de Cidadania de Minas Gerais.
De acordo com os organizadores, a reunião pública, que lotou as dependências do teatro, também chamada de Assembleia Popular dos Atingidos por Barragens, teve como objetivo tirar as dúvidas dos atingidos sobre questões emergenciais e debater sobre o acordo que a Vale fez com a Defensoria Pública do Estado, “a portas fechadas”, prejudicial ao processo de ação coletiva e que isenta a empresa de futuros processos judiciais.
Segundo André Sperling, “após fazer o acordo de gabinete com a Defensoria Pública do Estado, a Vale alegou que a adesão seria voluntária. Só que, ao mesmo tempo, apresentou um documento em que fica claro que, ao assinar, o requerente isenta a empresa de qualquer ação futura. Ou seja, é a segunda vez que a Vale mata pessoas, meio-ambiente, cidades e ainda trata os atingidos de Brumadinho como inferiores aos de Mariana. Com o acordo, você não vai conseguir mais nada. Garante que não se pode mais abrir ação indenizatória. E a Vale ainda define quanto vale o direito do atingido. É uma grande armadilha. Ela é a criminosa e assassina e vocês são tratados como ratos”, protestou.
O promotor, que faz parte da Força Tarefa criada para defender os direitos de vítimas, familiares e atingidos, afirmou que vai propor que seja realizada uma assembleia com a Vale e atingidos e que o documento seja considerado “um adiantamento da indenização”. “Dessa forma, ele não esgota a responsabilidade da empresa. Se a Vale não aceitar estas condições, ficará claro que ela está tentando ludibriar os atingidos e que não está preocupada com a população de Brumadinho. Precisamos estar unidos, porque sozinhos podemos cair nas trapaças da Vale”, disse André Sperling.
“Temos que continuar unidos e organizados para enfrentar todas as trapaças da empresa, que já tenta impor dois conceitos: atingidos diretos e os atingidos indiretos. São todos atingidos, e ponto final. Tentam manipular as pessoas. Perderam a vida com a lama, com a contaminação ou sofreram depressão. Usaram também o termo impactados, para quem a lama chegou na casa. Vamos chamar a Vale para uma assembleia e impor que o documento seja uma antecipação da indenização. Também não podemos abandonar os não encontrados. Ninguém solta a mão de ninguém. Não terão um minuto de descanso. Ninguém nos segura. A Vale vai ter que pagar o que nos deve”, afirmou Joceli Andrioli
O coordenador do MAB lembrou que ainda falta, no país, “uma política que mantenha os direitos dos atingidos”. “Não podemos perder a chance de fazer Justiça. Se Congonhas romper, vai passar por dentro de Brumadinho, com consequências ainda mais catastróficas. Belo Horizonte está ameaçada de evacuação. Nós precisamos salvar os rios deste país, salvar o povo.”
Ato cultural
Por volta das 17h30, a Frente Brasil Popular Minas organizou o Ato Político Cultural para homenagear as vítimas, mas também reivindicar novas formas de mineração, que não tragam danos às comunidades e ao ambiente. Os grupos de manifestantes se uniram em frente à Igreja Matriz de São Sebastião de Brumadinho. Atingidos, familiares, militantes de centrais sindicais e movimentos sociais chegaram ao local em marcha, depois da assembleia popular realizada no Teatro Municipal. No trajeto, acompanhados por caminhão de som do Sind-UTE/MG, eles dialogaram com a população sobre o crime da Vale.
“A Vale tem planos de continuar essa exploração às custas das famílias, das casas, da destruição de cidades. Enquanto houver esse modelo de mineração, para o povo sobra a dor e lama. Outro modelo de mineração e de vida é possível.”