Dublês do setor elétrico
Publicado: 24 Agosto, 2016 - 15h47
A terceirização é um processo de externalização das relações trabalhistas, fruto da lógica de flexibilização do trabalho no capitalismo neoliberal, que tem se solidificado com a reestruturação produtiva ocorrida com maior intensidade a partir do final do século XX. Essa forma de vínculo empregatício, que busca status constitucional no Brasil, estabelece novas relações de trabalho que têm impacto direto na realidade em que os sujeitos constroem sua identidade social. Como situação conjuntural persistente amplamente associada a uma precarização das condições de trabalho e à violação das conquistas sociais trabalhistas (Coura, 2011; Coutinho, 2015; Franco, Druck, & Seligmann- Silva, 2010), a terceirização está diretamente relacionada à atividade subjetiva (Gennari & Albuquerque, 2013), da construção de sujeitos sociais (Thompson, 1981).
Considerando que as transformações dos modos de produção promovem significativas consequências para a constituição do ser, visto que a identidade social refere-se à interação entre as dimensões subjetivas e objetivas, em que o trabalho se apresenta como categoria de grande expressividade (Jacques, 1996), objetiva-se propor reflexões sobre identidade e trabalho terceirizado. Em um processo de intensa flexibilização do trabalho no setor elétrico, questiona-se: como a terceirização afeta a produção de identidade social dos trabalhadores eletricitários?
O crescimento da terceirização no setor elétrico brasileiro evidencia a lógica valorativa que permeia as atuais formas de contratação da força de trabalho, que visa reduzir custos ao mesmo tempo em que expõe os trabalhadores a uma sinergia de fatores que potencializam os riscos no trabalho. Em 2004, o número de profissionais do quadro próprio no setor era de 96.579, enquanto os terceirizados somavam 76.972; em 2013, o quadro próprio era de 105.962 e os terceirizados chegaram a 130.833 (Fundação Comitê de Gestão Empresarial - Funcoge, 2013). Desse modo, enquanto o aumento do primeiro foi de 9,72% no período, os terceirizados aumentaram 69,97%, o que reafirma os traços do crescimento do setor elétrico brasileiro pautado no afrouxamento dos vínculos empregatícios do trabalhador.
Em análise de dados coletados entre 2003 e 2012 sobre o setor elétrico brasileiro pela Funcoge (2013), verificou-se que a taxa média anual de acidentes fatais típicos de todos os trabalhadores brasileiros foi calculada em 7 por 100.000; entre trabalhadores do quadro próprio das empresas do setor elétrico a taxa chegou a 12,37 por 100.000. A situação é ainda muito mais grave quando são considerados os dados de empregados das contratadas, ou seja, para a força de trabalho total do setor elétrico brasileiro a taxa foi de 36,77 por 100.000. Conclui-se então que o número de acidentes fatais no setor elétrico, considerando terceirizados e quadro próprio, neste período, é 5,25 vezes maior quando comparado às demais atividades produtivas brasileiras, ou seja, um setor de alto risco que é agravado pela terceirização. Dados coletados entre 2001 e 2013, também pela Funcoge (2013) revelam 183 acidentes fatais entre empregados do quadro próprio e 748 mortes no quadro das contratadas, o que resulta em um número 4,09 vezes maior entre essas empresas.
A partir dessa perspectiva, ressalta-se a importância de compreender a subjetividade dos trabalhadores do setor elétrico em Minas Gerais, no qual a subcontratação como estratégia competitiva, que tem como objetivo reduzir os custos da produção, tem se ampliado em larga escala. A Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig), especificamente, tem reduzido seu quadro efetivo de forma crescente, de modo que, em 2013, os terceirizados já representavam 68,51% da força de trabalho da empresa (Funcoge, 2013).
De acordo com dados fornecidos às autoras em 2015 pelo Sindieletro-MG, em Minas Gerais não houve registros de acidentes fatais com trabalhadores do quadro próprio da concessionária de energia do estado em 2014, entretanto, foram notificados quatro acidentes fatais com funcionários terceirizados. Ainda com base em dados fornecidos pela entidade, no período de janeiro a julho de 2015, foram registrados quatro acidentes fatais com funcionários de empreiteiras. Em contrapartida, ressalta-se a ausência de acidentes dessa magnitude com trabalhadores do quadro próprio da empregadora. Além disso, considerando o mesmo período, o Sindicato registrou que 81,33% do total de acidentes registrados pela empresa eram oriundos do quadro terceirizado.
Para compreender a complexidade dos dados estatísticos e fazer uma análise que atravesse o contexto sócio-histórico do trabalhador terceirizado e a construção de sua identidade, foi realizado estudo de caso com a preocupação de se entender o que o singular sugere a respeito do todo (Ventura, 2007). É desse modo que a análise detalhada de um caso individual procura abarcar as dinâmicas processuais intrínsecas à própria vida, imersa em um cenário político, econômico, social e cultural que também se metamorfoseia com essa imersão.
No período de 2003 a 2012, Paulo (nome fictício) trabalhou como eletricitário na manutenção de rede elétrica em nove empreiteiras. Foi desligado de sua função e aposentado, devido a um acidente de trabalho decorrente de choque elétrico, no qual perdeu os dois antebraços e parte da perna esquerda, impossibilitando-o de exercer novamente sua função, bem como quaisquer outras atividades laborais. Paulo afirma que a conjuntura de trabalho dos eletricitários terceirizados é crítica e precária, sem condições adequadas de segurança, alimentação e assistência à saúde.
Durante seu trabalho como eletricitário terceirizado, sofria pressão temporal e por produção, tratamento desrespeitoso por parte de seus encarregados, riscos cotidianos de acidentes, ausência de treinamento e equipamentos adequados, não usufruía adequadamente dos intervalos para as refeições e descanso e vivenciava jornadas de trabalho prolongadas com excesso de horas extras. A desresponsabilização da contratante acerca da subcontratação de sua mão de obra está relacionada aos riscos cotidianos vivenciados pelos contratados das empreiteiras.
A competência profissional dos terceirizados é desenvolvida em meio a condições precárias, que exigem do trabalhador regulações muitas vezes incompatíveis com a própria condição humana para conseguir gerir a carência de recursos materiais e organizacionais. Essa precariedade objetiva, marcada pela falta de ferramentas e estruturas adequadas para o exercício da atividade, soma-se ao coletivo fragilizado em que o encarregado, profissional responsável por gerenciar as condições seguras de trabalho, pressiona por produção, muitas vezes negligenciando a normatividade em prol da produtividade acordada no contrato feito com a concessionária.
Desse cenário emerge a construção de uma identidade mergulhada na fragilização das possibilidades de gestão da própria vida, em que o medo torna-se um ímpeto que circunda as ações no trabalho. Ao mesmo tempo em que a atuação é exercida com mérito, não há garantias do reconhecimento social, posto que ao trabalho realizado pelas empreiteiras resta o anonimato.
A atividade, os riscos e o sofrimento do eletricitário terceirizado são invisibilizados. Para Paulo, o trabalhador eletricitário terceirizado é aquele que substitui o trabalhador do quadro próprio, mas em piores condições e sem o devido reconhecimento, como dublês, assumindo o perigo da cena, mas não recebendo os créditos da atuação.
A terceirização como uma prática perversa da lógica destrutiva do capital tem ampliado os mecanismos de exploração e sujeição dos trabalhadores, gerando uma objetividade precarizada que acarreta subjetividades precarizadas (Antunes, 2014). Essa realidade neoliberal produz uma materialidade adversa aos trabalhadores, um solo social que constrange as possibilidades de construção de subjetividades autênticas (Antunes & Alves, 2004). Dessa forma, a precarização do trabalho está relacionada a processos de exclusão, principalmente no contexto do capitalismo flexível, dificultando a construção de uma imagem valorizada e sólida de si e impossibilitando a estruturação de identidades coletivas e políticas estáveis e valorizadas (Barros & Nogueira, 2007).
(*) Com Marcelle La Guardia Lara de Castro e Julie Micheline Amaral Silva